Friday, February 10, 2012

O Mito do Futebol de Rua





Este artigo é o resultado da colaboração profícua com Ricardo Pereira e representa uma visão conjunta desta questão

Desde há vários anos a esta parte, temos assistido ao surgimento de uma vasta panóplia de artigos e opiniões (especialmente provenientes de especialistas com formação académica) que abordam o futebol de rua como uma boa prática em vias de extinção. A questão tem tudo para ser algo polémica, começando desde logo pela dúvida quanto aos factos que sustentam essa premissa.

Na verdade, muitas destas opiniões surgem de especialistas cuja memória lhes permite aceder à denominada “magia do futebol”, em que a aleatoriedade parecia ser tão grande, que sobrava espaço para as grandes goleadas, para as exibições dominadoras (por algum motivo os recordes de goleadas, golos marcados e/ou sofridos datam quase todos dessas épocas) e para as reviravoltas assombrosas (são famosas as remontadas dos anos ‘60 do Real Madrid, por exemplo, em que se dava ao luxo de perder 3-0 fora de casa, porque sabia que poderia vencer por quatro ou cinco no seu reduto).

Na verdade, é extremamente comum ouvirem-se treinadores da primeira divisão nacional dizer que as diferenças entre as várias equipas estão hoje mais esbatidas. Afinal de contas, o Gil Vicente (para dar um exemplo recente), com uma pequena fracção do orçamento dos grandes, dificultou a vida ao Benfica e venceu FC Porto e Sporting, o que equivale a dizer que os desequilíbrios de qualidade serão hoje por hoje consideravelmente menores, o que parece contradizer em primeira instância a premissa de que o futebol de rua deveria ter maior primazia.

Por outro lado, o futebol sempre viveu dos seus deuses, das suas individualidades - de Pelé a Eusébio, de Cruyff a Maradona, de Ronaldo a Messi. No entanto, tendemos a esquecer-nos de quem os rodeava. É fácil branquear um qualquer ponto de vista ao relembrar apenas os melhores exemplos, mas é nossa opinião que o verdadeiro segredo está nos jogadores intermédios. Serão Veloso e João Pinto (grandes laterais da sua época) melhores do que Maicon, Lahm ou Roberto Carlos? Em que aspecto Bandeirinha ou Carlos Xavier eram melhores do que João Moutinho ou Javi Garcia? Como poderemos justificar a afirmação segundo a qual o desaparecimento do futebol de rua é “uma das grandes razões para o empobrecimento da qualidade individual e coletiva do jogo de Futebol atual?” Em que medida podemos considerar o futebol actual mais pobre do que há alguns anos atrás?

Acima de tudo, consideramos fundamental não cair na tentação do pensamento analítico e retirar um componente de algo que poderá ter sido válido numa outra época e numa realidade absolutamente distinta. Como é hoje bem sabido, a relação entre os diversos componentes de uma determinada realidade é tão ou mais importante do que esse mesmo componente. Vem a isto a propósito da tentativa de replicação de hábitos que hoje são quase impensáveis. Parece impossível conceber jovens de tenra idade a praticarem qualquer actividade física horas e horas a fio, dada a realidade sócio-económica em que estamos inseridos. Como tal, resulta também inconcebível tentar replicar o futebol de rua na sociedade de conhecimento em que estamos inseridos. Na verdade, nunca como hoje os jovens praticantes tiveram à sua disposição condições tão boas e treinadores tão qualificados para a prática da modalidade. Por conseguinte, como se explica esta súbita vontade de regressar ao passado?
Se analisarmos com atenção, o futebol é a única modalidade que reclama para si um regresso ao passado e que envia à sua comunidade mensagens contraditórias (por exemplo, não é conhecido nenhum treinador de futsal que exija um regresso ao futebol de salão, às bolas duras ou às tabelas). Por um lado, pretendemos relvados sintéticos; por outro, achamos por bem colocar os praticantes nos pelados. Por um lado, pretendemos “treinar para jogar” (um mantra repetido à exaustão); por outro, queremos que meninos e meninas aprendam por si, com tempo, sem pressão. Por um lado, queremos os melhores a jogar com os melhores, sendo constantemente desafiados; por outro, achamos por bem deixarmos 25 jovens, entre os quais se destacam 4 ou 5, em absoluta aleatoriedade. Por um lado, alertamos pais e jogadores para a necessidade de compreender o jogo; por outro, parece-nos correcto despender meia-hora de treino para que os praticantes descubram as suas soluções.
Se nunca como hoje as condições foram tão boas para a prática da modalidade (bolas devidamente dimensionadas para o escalão, calçado adequado, condicionantes especialmente provocadas para o escalão e nível dos intervenientes, etc.), porquê optarmos por um aparente regresso ao passado em vez de potenciarmos aquilo por que todos nós lutámos?

Como é evidente, consideramos o futebol de rua uma excelente fonte de recursos para a prática da modalidade, mas não cremos de forma alguma que seja a melhor para o nosso contexto. Contudo, é nossa opinião que o futebol de rua tende a excluir imediatamente os menos dotados tecnicamente.
Nesse aspecto, o que acontece aos menos evoluídos física e tecnicamente? Perderão certamente mais vezes, sairão mais frustrados do treino e menos motivados face à paixão que os levou a experimentar o desporto. Não estaremos assim, com o retorno ao futebol de rua, a privar o conhecimento do jogo de uma forma mais académica e com outra abordagem aos atletas menos dotados tecnicamente, mas, por vezes, mais interessados e dedicados ao jogo como um todo?  Como todos nós saberemos, não há lugar no futebol de rua para os médios que pensam o jogo ou para os pivôs defensivos que equilibram a equipa ou, quando há esse espaço, não são valorizados - e corremos o risco de jovens praticantes com imenso valor se perderem pelo caminho apenas porque não fintam como Messi e porque não despendemos tempo a ensinar-lhes que o recurso técnico tem de servir um propósito e de ter uma relação directa com o jogo.

Numa época em que cada vez mais se fala em compreender o jogo como um todo e da especificidade do treino, custa-nos compreender em que medida o futebol de rua irá potenciar tudo isso nos jovens praticantes, particularmente numa altura em que os potenciais valores são atirados cada vez mais cedo para os plantéis principais. Se a opinião generalizada defende que a formação não fornece as ferramentas necessárias para entrar nos plantéis profissionais, por exemplo, como poderemos entender que esperar que todos os jovens encontrem a resposta certa para os vários problemas que se lhes vão apresentando seja considerada a solução?

Numa outra vertente, é actualmente consensual que é fundamental que os jogadores estejam o máximo de tempo possível em contacto com a bola; na verdade, os exercícios tendem cada vez mais para isso mesmo, uma vez que o pensamento analítico anteriormente vigente defendia uma visão compartimentada do futebol. A formação académica foi defendendo com cada vez maior intensidade que exercícios de 7x7 ou de 11x11 eram pouco proveitosos, uma vez que não permitiam aos atletas exacerbarem os movimentos e atitudes preconizados. No futebol de rua, a tendência é para que os mais dotados tecnicamente “abafem” o tempo de bola dos restantes praticantes. Para além disso, conforme atrás referido, de pouco importa a competência técnica se não se souber onde, quando e como aplicá-la (como exemplo, podemos comparar a evolução de Cristiano Ronaldo e Ricardo Quaresma, dois jogadores de características semelhantes que conheceram percursos diferentes).

Aquilo que, na nossa opinião, faz falta segundo a perspectiva de alguns especialistas são jogadores como Hulk, Ronaldo ou Messi, que conseguem resolver em determinadas situações aquilo que o colectivo não consegue. Curiosamente, a maior parte do tempo despendido com promessas vindas da América do Sul (pátria do futebol de rua) reside precisamente em integrar todo o talento nas vertentes tácticas, sem as quais o talento de pouco interessa. Aliás, não será difícil lembrarmo-nos de inúmeros talentos brasileiros, por exemplo, que não vingam ao mais alto nível (não obstante as suas capacidades) precisamente por não saberem como, onde e quando fazer uso das suas capacidades - de Diego a Robinho, passando por Adriano e Kardec, entre tantos outros.
Assim, em vez de optarmos por trilhar um caminho (por nós considerado) ultrapassado, porque não trabalhar especificamente o “artista”? Se consideramos que este jogador está em vias de extinção e que é importante para o futuro do futebol, porque não conceber respostas novas, que se adeqúem ao tempo em que vivemos? Porventura, será mais proveitoso identificar esses “artistas” e trabalharmo-los em toda a sua especificidade, por oferecerm atributos tão raros nos seus colegas, em vez de sujeitarmos esses mesmos colegas à espera de um novo Eusébio - o que nos leva para um novo tópico.

Se o futebol de rua é de forma tão evidente o futuro da modalidade (pensemos, a título de exemplo, no último Fórum do Treinador, onde essa ideia foi tão amplamente divulgada por tantos e tantos), por que motivo as nações onde essa prática impera - Brasil, Argentina, África - estão cada vez mais longe das fases de decisão dos Campeonatos do Mundo? Com efeito, nos últimos 15 anos, têm sido as nações capazes de implementar sistemas formativos bem estruturados - França, Espanha e Alemanha - que têm colhido os frutos e têm sido capazes de dominar as competições internacionais. Por outro lado, os jogadores uruguaios (equipa-sensação nos últimos anos) fazem constantemente referência à importância do papel do treinador ao prepará-los para os diferentes momentos do jogo. Não queremos de todo dizer com isto que a relação com a bola não é importante - bem pelo contrário -, mas sim que essa relação, isolada do desenvolvimento táctico e colectivo, de pouco serve e que, hoje em dia, teremos de desenhar novas soluções para novos problemas, ao invés de recuarmos a tempos e medidas que nos são mais familiares. Como tal, não estamos de acordo com a afirmação segundo a qual “a sofisticação dos terrenos de jogo representa um retrocesso pedagógico”, pois não cremos ser esse o caso.

Apresentamos mais abaixo algumas citações de Ricky van Wolfswinkel, ponta-de-lança (posição que temos “historicamente” dificuldade em desenvolver), como exemplo de como é para nós fundamental dar as pistas aos atletas para que desenvolvam as capacidades que julgamos mais correctas para um jogo de futebol, afinal de contas o que deveria ser o objectivo máximo. Este caso em concreto vem precisamente da escola holandesa, aquela a que tantos de nós vão buscar inspiração.

You know a huge difference with Holland….? In Holland, they say “you play like you practice…” Hence my coaches at Utrecht being livid if I tried something flash. Here, they hardly train.” “Porto, Benfica and to a somewhat lesser extend Sporting do better in Europa than Dutch teams. Portuguese clubs cheer if they drew a Dutch opponent. They think we are naive and want to solve things in a technical way. They like their odds…

Aparentemente, Wolfswinkel parece querer dizer que basearmos a nossa competência nas capacidades meramente técnicas não é suficiente. Por outro lado, Wolfswinkel é apenas um dos inúmeros valiosos pontas-de-lança holandeses que desfilam pelos campos europeus com centenas de horas de treino direccionado, orientado e específico para a sua posição (por todos considerada uma das mais difíceis). Não será por certo coincidência nem, cremos nós, fruto da aleatoriedade do futebol de rua, mas sim de muito trabalho e métodos adequados à modalidade e à competência do jogador.

Em jeito de conclusão, o termo e o conceito “Futebol de Rua” parecem ser uma expressão saudosista que nos remete para os sentimentos da actividade em grupo de outrora e cujo conceito é vago e pode ter múltiplas interpretações. Na nossa opinião, não é a expressão mais indicada quando os nossos valores se mantêm bem definidos, na cultura do toque de bola, do passe e do estilo de jogo apoiado. Muitos analistas e experientes formadores falam do “futebol de rua” como uma forma de dar liberdade e desenvolver a criatividade do atleta em todos os escalões de formação. O “futebol de rua” põe Messis a circundar oponentes como se de sinalizadores se tratasse, ao passo que, na nossa sociedade contemporânea, temos vários exemplos de “futuras promessas” com vídeos nas redes sociais em vários slaloms contínuos. O verdadeiro factor decisivo do sucesso de muitos desses Messis é a sua posterior compreensão do jogo de equipa e a competência de quando saber usar esta dádiva/ferramenta, apenas ao alcance de alguns, em prol da equipa e dos momentos do jogo.

Em Portugal, continuamos a “endeusar” os atletas tecnicamente mais dotados e que, numa fase de afirmação, tendem a perder-se por falta de entendimento e formação sobre o jogo de futebol. Muitas vezes, acabam por ser encostados nas laterais, onde o risco para a equipa é menor e porque isso representa retirá-los do miolo do terreno, onde o jogador criativo é mais letal. Não estaremos nós a estrangular a formação em Portugal ao limitarmo-la a formar pouquíssimos extremos, mas (potencialmente) de altíssima qualidade, à custa de milhares de atletas que:
  • sendo dotados de uma técnica extraordinária, não passam da mediania competitiva, por falta de conhecimentos do jogo que lhes permita solucionar problemas em jogos mais equilibrados (podendo integrar-se aqui os casos mais conhecidos de Vieirinha, Targino, Rabiola, entre tantos outros)
Apresentamos em seguida uma citação de um dos mais famosos extremos portugueses que pode explicar o sucesso de Cristiano Ronaldo no top-3 mundial:
“The Portuguese winger Nani has said he is not able to express himself at Manchester United.
The 24-year-old, who learned his tricks as a child playing with his friends on the streets of Lisbon, says he has had his wings clipped by Sir Alex Ferguson.
"I try to enjoy playing now, but it is not always possible because I have a responsibility to the team," Nani told the Spanish weekly sports magazine Don Balón.
"But something of the street remains in me. It is not easy to show at United because Sir Alex does not allow very much freedom and I cannot do the tricks and things I did with my friends.
"But when the game is under control I take a risk and it makes me very happy if things work out."

  • sendo menos dotados tecnicamente, mas dispondo de grande interesse e conhecimento do jogo, desempenham funções menos vistosas nas competições de formação, mas de uma importância fundamental nas competições profissionais de alto nível. Mais uma vez, não nos parece aleatório que os melhores jogadores sejam cada vez mais provenientes de culturas mais tácticas, de Witsel a Defour, de Özil a Khedira, de Sneijder a van Persie, de Iniesta a Xavi, entre tantos outros exemplo, deixando aos jogadores portugueses a alternativa de ir para fora adquirir experiência necessária para se elevarem como jogadores de top, tanto nos casos passados de Paulo Sousa, Rui Costa, Figo ou Pauleta, como os actuais exemplos de Castro, Rui Fonte, Makukula, Manuel Fernandes, Hélio Pinto, entre muitos outros.


Defendemos portanto que a criatividade e a liberdade seja concedida quase por completo numa fase muito jovem do processo de formação, mas que seja orientada e integrada num modelo de jogo numa fase competitiva da formação rica em variáveis e condicionantes impostas de forma a potenciar a qualidade táctica do atleta.
Muito do sucesso espanhol na formação e do Barcelona nestes últimos anos prende-se com o facto de se juntarem jogadores evoluídos tecnicamente com o cumprimento táctico de responsabilidades que lhes permite ocupar qualquer posição tanto no miolo como nas alas, tanto no sector recuado como avançado. Messi, Iniesta ou Xavi vêm relembrar-nos que a técnica apenas é válida ao serviço do colectivo - o próprio Xavi assume que a sua visão de jogo e técnica de passe de nada valem se não houver desmarcações dos colegas, o que atesta bem a noção que um dos melhores jogadores do mundo tem da necessidade de movimentos de ruptura nos tempos espaços certos. Por outro lado, é de reter a importância do extremo Pedro Rodríguez na manobra defensiva, ao descrever as suas funções defensivas como “o primeiro a defender, para que a bola não precise de chegar à nossa defesa”. Deste modo, é-nos possível verificar como os diversos momentos são indivisíveis e como escorregar na armadilha do futebol de rua nos pode fazer anular décadas de progresso.